24/03/2014

Posições


A tangenziale napolitana é uma espécie de 2ª circular lisboeta mas para uma referência mais precisa acrescentem-lhe 40 quilómetros de estrada e o sextuplo do tráfego. Estão a imaginar o bicho? Pois, basicamente o inferno na terra.
Domingo em Nápoles, como em tantas outras cidades do mundo, é dia de reunião de Família. Para os napolitanos reunião familiar domingueira é sinónimo de enfardamento alimentar. É um assunto sério que deve ser seguido religiosamente pelas famílias napolitanas independentemente do estrato sócio-económico. Está-lhes no sangue comer até cair para o lado no almoço de domingo. Todos os domingos! A cereja no topo do bolo é mesmo quando esses almoços são seguidos do jogo do Nápoles na tv ou no Estádio de São Paulo. Uiiii, isso então é mel! 

Ora é exactamente nesse dia e horário que eu e o meu homem - pouco dados a enfardamentos alimentares e bastante escorregadios no que se refere a tradições familiares domingueiras - fazemos uma série de escapadas pela cidade que noutra altura nos seriam impossíveis. Incluíndo ir ao Ikea. Imaginem o Ikea completamente vazio, apenas uma ou outra alma a registar. Pois assim é o Ikea num domingo à hora de almoço em Nápoles. Parece mentira, eu sei, mas é mesmo assim.

Com a nossa filha a chegar daqui a umas semanas, ir ao Ikea e suas semelhantes para organizar a casa, tornou-se um hábito. Infelizmente. Foi numa dessas idas domingueiras, a semana passada, que em plena tangenziale avistei uma situação que tão cedo não me sairá da cabeça. Estávamos na via da esquerda atrás de um carro que ao ver-nos aproximar se afastou para a direita ao mesmo tempo que perdia velocidade. Quando o estávamos a ultrapassar olhei para dentro do referido carro e vejo o condutor, um homem, a pregar dois valentes bofetões à mulher que ía no lugar do pendura. Obviamente tudo isto aconteceu demasiado rápido mas antes de relatar o que tinha visto - revoltada e aos berros - ao meu homem, ainda vi a mulher aterrorizada baixar a cabeça enquanto colocava as mãos na cara. No lugar de trás estavam crianças mas não reparei quantas, nem sequer de que sexo seriam. Apenas reparei que estavam sentadas crianças no banco de trás. 

Fiquei perplexa, chocada. Quis que parássemos. Sei lá o que me passou pela cabeça naquele momento. Sei lá...
Nada justifica violência doméstica, seja ela física, psicológica, feminina, masculina. Nada. Mas assim como penso que nada justifica o agressor, sou da igual opinião de que nada justifica a posição do agredido.

Quem esbofeteia uma mulher da forma displicente como vi este homem fazer enquanto conduz é porque estará decerto acostumado a fazê-lo. Quem esbofeteia uma mulher frente aos supostos filhos e em plena via pública é porque o faz de forma recorrente. Quem é esbofeteado por um homem neste contexto e baixa a cabeça tapando a cara com as palmas das mãos é porque está acostumada e pior conformou-se com a situação, ainda que por breves momentos. É o statos quo. 

A meu ver, agressor e agredido (em casos de violência doméstica) são posições tão distintas, como semelhantes. A mudança impõe-se não apenas a um dos protagonistas, mas sim aos dois. O que não significa em caso algum que essa mudança tenha de ser feita em conjunto ou que a mudança de um apenas dependa da mudança do outro. Terão os dois de mudar. Ponto final.    

Acredito com todas as minhas forças que depende sempre de nós evitar ocupar o lugar de agressor ou de agredido num contexto de violência doméstica. Acredito piamente que basta um sonante "NÃO" mais interiorizado que exteriorizado. O "NÃO" vê-se na cara de quem o sente e de quem o pensa, de quem o interiorizou. Acredito também não ser preciso força nas guelras para dizer "NÃO" basta amor próprio, e nada mais fácil de conquistar que esse amor que se nutre por si mesmo ainda que na maior parte das vezes possa parecer tarefa impossível. E de nada vale dizerem-me que há casos e casos e cada um terá de ser analisado à luz da sua realidade. Somos todos humanamente iguais diferimos de mais ou menos responsabilidades, possibilidades, oportunidades, mas o "NÃO", esse, é só um e funciona em modo humanamente universal.

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